Maior ninhal do Pantanal tem quase um quilômetro de extensão



       É tempo em que a vida se renova e o Pantanal renasce. É o tempo em que a natureza não se acanha e toma conta de tudo. Riquezas que só encontramos em um dos maiores patrimônios naturais da humanidade: o Pantanal. Quase todo ele está em território brasileiro.
Durante quase três meses, nossos repórteres foram aos pontos mais distantes dessa imensa região. Uma  equipe saiu de Cuiabá, em Mato Grosso. A outra, de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Embrenharam-se pelas matas e pelos rios dessa que é uma das maiores planícies inundáveis do planeta.





       O Pantanal só existe por causa do pulso de inundação, que é o regime de cheias e secas. O sobe e desce das águas transforma a região em um lugar de extremos.
Na época de cheia, há áreas que ficam debaixo d’água. Na seca, formam-se baías com cerca de um metro de profundidade. É pouca água e muito peixe. Por isso, eles sobem até a superfície para buscar oxigênio.


       Mas, para as aves, a seca é uma festa. É tempo de voar à vontade e, quem sabe, até surfar. O céu é o palco de um balé encantador. Os visitantes vêm de longe. As praias ficam repletas de talha-mares, gaivotas e tuiuiús. Em uma estratégia de defesa, escolhem bem o lugar para pôr os ovos, com água limpa e comida farta para os filhotes. Depois de uma grande cheia vem a fartura: muito peixe nas lagoas e rios. Comida não falta nesta época.


       Longe das praias, o dia a dia também é farto. O tucano toma conta do pé de mamão. E qual será o melhor jeito de saborear a fruta? Os que buscam o alimento na terra têm espaço de sobra. Bom para o tamanduá-bandeira, que come mais de dez mil formigas e cupins por dia. O focinho leva vantagem. O mirim até sobe em árvores atrás de comida e sossego. O casal de lobinhos não se larga. O tatu-peba é mais tímido. Os veadinhos olham desconfiados, mas não se importam conosco.


       O casal de macacos-prego não se contenta com uma só banana. O macho, mais abusado, não se intimida. Depois de tanta comida, vem a preguiça.
No Pantanal do Rio Negro, as araras-azuis se deliciam com os cocos de acuri. Parecem até gente. Ameaçadas de extinção no Brasil, no Pantanal a pesquisa trouxe o conhecimento e a proteção que elas precisam. Quando a cheia vai embora, é tempo de romance: namoro nos galhos dos ipês em flor. E não são só elas. Os tuiuiús já estão no ninho.
E que ninhos. A maior ave da região é também o maior símbolo do Pantanal. O ninho do tuiuiú é grande, sólido e feito para abrigar a prole com segurança nos locais mais inacessíveis. Alguns parecem esculturas.


       Desajeitado e belo ao mesmo tempo, o tuiuiú cuida dos filhotes com todo o carinho. Voa longe em busca de alimento e água para eles. E é assim em todo o Pantanal.
Na América do Sul, o Pantanal é um dos mais importantes locais de reprodução de aves aquáticas. Mais de 50 ninhais são monitorados ano a ano.
“A média é de uns quatro mil indivíduos em um ninhal. Tem ninhais pequenos, com até 200. E tem ninhais maiores com até dez mil”, diz o veterinário Marcos Ferramosca, da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso.


       Mesmo ocupando áreas imensas, a grande parte dos ninhais do Pantanal está em lugares de difícil acesso. Tem a vegetação na beira do rio, justamente para que as pessoas não descubram onde é esse paraíso.
Quanto mais escondido dos predadores e longe da interferência dos seres humanos, melhor para a reprodução das aves nos ninhais. É preciso ter muito cuidado para se evitar uma revoada.


       “Os filhotes caem. Aí o predador faz a festa. É carcará atacando de todos os lados os filhotes que ficam desprotegidos nos ninhos. Desde que a gente não facilite a ação deles, o resto é com a natureza”, explica o veterinário.


        Após caminhar por uma hora e meia, já dá para ouvir o barulho. O único ninhal da reserva é uma cena cinematográfica.
“Aí nós temos a garça branca, o cabeça seca, o colhereiro e o maguari. Então você tem uma diversidade grande e um acaba protegendo o outro”, aponta a bióloga Silvia Kataoka, da Estação Ecológica Taiamã.


       A primavera é a época dos ninhais das aves brancas. Às vezes elas fazem ninhos nos mesmos galhos que, entre maio e junho, são ocupados pelos ninhais pretos, dos biguás e biguatingas.
       O maior ninhal do Pantanal tem quase um quilômetro de extensão. As aves usam oito diferentes espécies de árvores para fazer os ninhos. Ao contrário de outros ninhais que ficam bem mais escondidos, este está bem exposto, na margem do Rio Paraguai.
No Pantanal, existem quase 700 espécies de aves. “Mais ou menos 80 espécies destas são migratórias, e migram dentro do Pantanal, ou então migram dentro do nosso continente, para a Floresta Amazônica, para o cerrado, ou ainda migram para outros países”, conta o professor Josué da Silva Nunes, da Universidade de Mato Grosso (Unemat).


      Em um ninhal, às margens do Rio Aquidauana, encontramos um lugar privilegiado para observar. É um prazer ver uma explosão de vida. Garças, cabeças secas, colhereiros...
As penas dos colhereiros machos ficam mais vermelhas para atrair as fêmeas.
       Movimentação o dia inteiro. Uns protegem os ovos nos ninhos, outros cuidam dos filhotes cheios de penugens. E quando o calor aperta...
“Macho e gêmea se revezam para cuidar dos filhotes. Enquanto o macho está coletando peixes nas baías, a fêmea fica cuidando, em toda uma técnica de fazer sombra para o filhote”, diz o biólogo ornitólogo Alessandro Pacheco Nunes, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.


       Enquanto alguns se escondem do sol, a cobra-cipó se estende na cerca de arame. Fica ali, se enroscando, atraindo os curiosos. Lagartos e jacarés estão entre os que mais vão em busca do sol. Os jacarés costumam ficar enfileirados nos barrancos e nas praias. Esse aquecimento é necessário para regular o organismo deles. Quando estão em terra, perdem seu poder. Até fogem quando nos aproximamos. Já na água, é bem diferente. Mas, nesta época do ano, não oferecem perigo.


       ”Nesta época do ano, eles são mais mansos. Já na época da reprodução, em março, são bravos, em defesa dos filhos e dos ovos. A tendência é que nesse período não convém se aproximar. Porque eles atacam”, alerta a bióloga Carolina Joana da Silva, da Universidade de Mato Grosso.


       Vida e morte, cheia e seca: os contrastes são rotina no Pantanal. Imensas áreas guardam muitos e desconhecidos esconderijos. A Vazante do Castelo é um dos refúgios do Pantanal do Rio Negro. Na época da cheia, os cardumes ficam represados nos campos, e quando a enchente está indo embora esses peixes nadam em direção aos rios. O interessante é que a paisagem dura no máximo um mês. Depois, fica tudo seco.
        Essa eterna mudança garante o equilíbrio da natureza no Pantanal. Equilíbrio que testemunhamos nos mínimos detalhes. Às margens do Rio Paraguai, um abobreiro está repleto de ninhos de japuíra. Parecem até que são frutos que fazem parte da árvore. Enquanto as japuíras cuidam da vida, os peixes não perdem tempo: abocanham cada flor que cai do abobreiro.


       “É um momento de perfeita integração, onde se liga o ar, a água e a terra. Sob a luz do sol”, diz a bióloga Carolina Joana da Silva.
Integração perfeita, porém, não quer dizer fora de perigo. A fauna pantaneira é tão rica que até quando fechamos os olhos e ficamos só ouvindo, a vontade é se deixar levar por toda essa beleza. Mas no lugar é preciso estar alerta, sempre.
Do outro lado, no Pantanal de Poconé, encontramos as marcas da onça pintada em uma árvore no meio da trilha.


       “Essas marcas são uma das formas da onça pintada marcar o seu território. Ela arranha a árvore como se dissesse: olha, esse aqui é meu terreno. Ela é uma onça bem grande”, analisa o guia Gonçalvi Nunes de Aruda.
       Mais adiante, novos sinais. Mas só depois, descendo o Rio Paraguai, conseguimos ver a onça. Na verdade, três: a mãe e dois filhotes.
Para conseguir ver os bichos do Pantanal, é preciso ter paciência e sorte. Ele sempre nos reserva surpresas. A equipe já estava indo embora quando viu uma onça pintada embaixo da árvore.


       Trata-se de uma fêmea. Está muito tranquila. Com certeza, acabou de comer e foi descansar na margem do Rio Touro Morto. Tivemos tempo para observar a beleza do maior carnívoro do Pantanal. Ela se lambe, boceja e fica de preguiça. Sabe que estamos por perto. Deixa bem claro: nada de aproximações. Nesse encontro, descobrimos que é mesmo verdade o que se diz no Pantanal: a onça ninguém vê, ela se mostra.


       Viajar pela Estrada Parque significa ficar pulando dentro do carro, porque as estradas acabaram. Para percorrer algo em torno de 30 quilômetros, levamos de uma hora e meia a duas horas. Mas, para quem toca a boiada, a poeira é sinal de que a vida está voltando ao normal. Depois dos meses de cheia, com o gado isolado e morrendo, o que importa é poder ir e vir à vontade. É por saber dar valor a momentos tão diversos das secas e das cheias que o pantaneiro, uma espécie de cowboy do Pantanal, vê a vida de um jeito diferente.


       “É simples você acordar e ter luz, ter água, ter comida, você ter um cavalo para andar, tocar o gado, tratar o bezerro. Coisa simples, não tem mistério a vida do pantaneiro”, define a administradora Mayara Gracin.
       Quando o dia chega ao fim, o Pantanal vai se aquietando. Mas há segredos que só se revelam no silêncio e na escuridão. Na base de pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, encontramos o engenheiro agrônomo Arnildo Pott, professor da UFMS, e uma raridade no quintal: o camalote da meia-noite.


       O nome é porque a flor só abre na completa escuridão e tem uma estratégia para atrair os besouros: o cheiro é de éter. O professor Arnildo passou mais de 20 anos estudando as plantas do Pantanal.
      “O cheiro de éter atrai o polinizador, que é um besourinho, o mesmo besouro da vitória régia. Aí a flor fecha e ele fica preso. Ele fica andando, tentando sair, e aí ele se lambuza todo de pólen. Quando ele sai, sai cheio de pólen para outra flor que vai abrir pela primeira vez”, conta.


Fonte: G1/Globo Repórter
Cláudia Gaigher e Eunice Ramos

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